Sr. Armani nos deixou em 04 de setembro de 2025. Poucos dias antes, o estilista italiano concedeu à Numéro Brasil aquela que seria sua última entrevista para um título brasileiro – e uma das últimas de sua vida –, parte da coluna “Fashion Curated”, de Antonia Petta, que integra nossa nova edição. A revista chegou às bancas antes que pudéssemos atualizar a matéria, cuja versão original é a que você lê abaixo. Deixamos aqui um agradecimento ao Sr. Armani e sua equipe pela imensurável contribuição criativa para a indústria da moda. Será eternamente lembrada por nós.
Na cosmologia de moda de Giorgio Armani, a alta-costura é o grande astro. Irradiando luz, exaltando a excelência do fatto a mano e gerando a atração gravitacional das estrelas, a linha Armani Privé celebra 20 anos com uma mostra inédita em Milão. Para a estreia da coluna Fashion Curated, dedicada às mais exuberantes mostras de moda, o estilista italiano fala com exclusividade sobre o papel do curador.
A lua não produz sua própria luz. O luar, na realidade, é a luz do astro-rei refletida sobre a sua superfície. Não seria errado dizer que um fenômeno similar aconteceu em Paris em julho passado, quando Sr. Armani se ausentou do desfile do Inverno 2026 de sua Armani Privé por motivos de saúde. Embora não estivesse presente fisicamente na apresentação (pela primeira vez desde a estreia da linha couture, há duas décadas), o reflexo de sua condução artística estava registrado em cada um dos 77 looks que cruzaram a passarela. Em uma ode à mística do preto, a coleção tinha seu olhar em cada detalhe: da justaposição do veludo noir com as sedas de brilho metálico aos bordados de contas cujo mosaico poderia enganar o olho até mesmo das clientes sentadas na primeira fila – como dizem por aí, às vezes é preciso estar na escuridão para ver as estrelas. Aos 91 anos, Sr. Armani está bem e de volta ao trabalho, supervisionando a galáxia de marcas que construiu ao longo dos últimos 50 anos e o lançamento do projeto Armani/Archivio, que inclui uma plataforma digital interativa, uma exposição na Pinacoteca di Brera e um desfile comemorativo marcado para o fim deste setembro no Palazzo Brera, ambos em Milão.
Mas é sobre alta-costura a nossa conversa. Mais especificamente, sobre a exposição “Giorgio Armani Privé 2005 – 2025, Twenty Years of Haute Couture”, que ocupa até o fim do ano o Armani Silos, museu de moda criado por ele em 2015, em Milão, e na qual o próprio assumiu o papel de curador. Sr. Armani acredita que a couture é o ápice do exercício criativo de moda. “É onde a imaginação pode ser expressa de maneira livre, sem as amarras da consideração comercial. E isso é valioso, porque diz algo sobre o poder da imaginação humana”, ele conta, em entrevista exclusiva para a coluna. “Um vestido de alta-costura é uma exploração da fantasia, um estudo sobre experimentação. É também uma oportunidade de expressar a minha visão de elegância e estilo por meio do artesanato e do savoir-faire, de maneiras que o prêt-à-porter não permite.” Como ele mesmo costuma declarar, é um criador pragmático. Sua couture, portanto, não é de outro planeta; não se serve dos excessos e da teatralidade frequentemente associados ao métier. Ao propor sua visão de alta-costura, ele não deixa que a imaginação se perca no cosmos. Pelo contrário: mantém os pés fincados na Terra. “A alta-costura é também um serviço – desenhar roupas para uma clientela. É, por fim, a combinação de criatividade e pragmatismo”, define.
Para falar de um designer de moda cuja produção é comumente descrita como “clássica”, é preciso se ater aos significados que o conceito carrega nas entrelinhas. Um clássico não é um básico. Muito pelo contrário: em alguns momentos, essas ideias podem até se encontrar, mas criar um clássico exige uma habilidade de imensa complexidade. Além de consistência, é claro. Pergunto a ele se essa ideia, da consistência, não tem a ver com a maneira pela qual ele escolheu organizar e exposição. Os mais de 150 looks não estão dispostos por ordem cronológica, como se vê em grande parte das mostras retrospectivas, mas agrupados por afinidade estética, em microcosmos que atravessam a barreira do tempo, criando sua própria via láctea. “Foi um processo muito natural e instintivo. Eu não queria apresentar uma mera sequência cronológica, mas uma exposição que capturasse a essência da minha alta-costura; uma versão mais liberada e livre do meu estilo, com o uso de tecidos preciosos, técnicas que requerem muita habilidade e a allure de bordados feitos como joias. Então eu reinventei o espaço, imaginando uma jornada pelo universo Privé; uma jornada de cor e forma, mas também de som e aroma”, explica. A saber: a experiência propõe o despertar dos sentidos do visitante, com uma trilha sonora feita sob medida pelo trio de instrumentistas L’Antidote e o cheiro da fragrância Bois d’Encens, que exala pelo ambiente do Silos. “Selecionar as peças foi um processo simples, alinhado ao tema da luz que percorre as coleções couture. Usei cada criação para estabelecer um diálogo em comum, seja com o brilho lunar, uma superfície rebordada ou um material precioso”, detalha.
Para além da lua, há outros elementos do sistema solar que precisam ser citados ao observar a exposição, como as estrelas. Dessa vez, não as do céu, mas as que compõem o star system de Hollywood e integram a notável clientela da Armani Privé. Estão em exibição, por exemplo, o vestido de um ombro só com brilho prateado usado pela atriz Cate Blanchett para a cerimônia do Oscar em 2007, assim como o look de volume glamouroso, coberto por camadas de pontos brancos sobre base preta, desfilado na temporada do inverno 2019 e usado pela top model Irina Shayk no red carpet que inaugurou o Festival de Cannes deste ano.
Fotos: Divulgação
Se hoje a força gravitacional opera atraindo as celebridades para a etiqueta, antes o estilista era quem orbitava o universo do cinema para a criação de seu imaginário particular – filmes são um tema insistentemente presente nas inspirações de sua couture. O cinema foi sua primeira paixão, e não seria exagero dizer que foi também capaz de salvar vidas: quando era criança, durante um passeio com a irmã Rosana em Piacenza, sua cidade natal, deparou-se com um pacote de pólvora remanescente da guerra enquanto passava na frente do cinema.
Ao projetar seu corpo para observar de perto os pôsteres das atrações em cartaz, houve uma explosão. Rosana se salvou; o pequeno Giorgio sofreu alguns ferimentos. Mas as memórias para o despertar desse amor se tornaram maiores do que as cicatrizes. E como são boas as memórias: ainda jovem, ao acompanhar Rosana em um teste na Cinecittà, acidentalmente encontrou a lendária Anna Magnani; em outra ocasião, foi parar dentro de um cenário que se pretendia prisão, onde topou com Giulietta Masina, a emblemática atriz italiana e companheira de vida de Federico Fellini, que o olhou de cima a baixo, com o cigarro pendurado na boca. “O cinema sempre foi algo central para minha imaginação. Desde os primeiros dias, quando assistia a faroestes americanos, até a chegada dos neorrealistas italianos com sua visão extraordinária, em preto e branco, do mundo”, conta. Sr. Armani ainda se lembra do primeiro filme a que assistiu na vida. Foi La Corona di Ferro, de Alessandro Blasetti, em 1941. Apesar de contar com o casal mais popular da época, Luisa Ferida e Osvaldo Valenti, o épico o envolveu pelo enredo, e não necessariamente pela qualidade do cinema que mais inspiraria sua moda no futuro: o glamour. “Em termos de glamour, sempre me lembro do efeito que as estrelas de cinema da era de ouro de Hollywood causavam em mim. Ver atrizes como Marlene Dietrich, Ingrid Bergman e Greta Garbo em uma tela mágica foi o tipo de coisa que sussurrou um mundo de beleza e mistério pelo qual eu me atraí”, lembra.
O amor foi correspondido. Em 1980, um diretor pouco conhecido, chamado Paul Schrader, procurou o estilista para vestir Richard Gere no thriller Gigolô Americano. O resultado da colaboração foi meteórico: a entrada do estilo Armani, com sua pioneira alfaiataria, na imaginação coletiva – algo que ele descreve como mais eficaz do que a mais poderosa estratégia de marketing. Desde então, foram inúmeros os encontros com diretores de cinema – de Bernardo Bertolucci a Paolo Sorrentino, de Brian De Palma a Martin Scorsese (que fez o documentário curta-metragem Made in Milan sobre Armani em 1990) –, mas, sobretudo, com atores. “O que me fascina nesses artistas é sua elegância e confiança natural, uma expressão de glamour onde o apelo está muito mais na sugestão, nunca na ostentação.”
Pensando na alta-costura como uma afirmação do fatto a mano que sempre foi uma das grandes prerrogativas da moda italiana, me lembro de um fato curioso: Sr. Armani é frequentemente chamado de “maestro”, um termo que, na Itália, também é usado para se referir aos grandes diretores da sétima arte. Ele foi o primeiro estilista a ter suas criações expostas no museu Solomon R. Guggenheim, em Nova York, durante uma mostra no ano 2000. “Moda não é arte, mas é uma arte. E é uma parte crucial da cultura contemporânea. Sendo assim, tem seu lugar em museus e instituições culturais. A moda é uma indústria que tende a falar com ela mesma e, às vezes, esquece que existe um cliente. Para mim a verdadeira moda só existe se for vestida por pessoas reais. Ao trazê-la para espaços culturais, ela pode ser compartilhada com uma audiência mais ampla, que não tem acesso ao seu contexto restrito”, justifica.
Se queremos ver mais moda dentro de museus no futuro, não deveríamos estar pensando sobre o tipo de roupa que estamos produzindo e consumindo? “Eu tenho falado muito sobre esse tópico, em particular durante a pandemia, quando, por um momento, pareceu que estávamos vislumbrando um mundo em que as pessoas poderiam consumir menos e consumir melhor. Acredito que a moda deveria aspirar longevidade – não apenas em termos de qualidade de material, mas também de qualidade estética. Nós deveríamos estar criando itens que resistirão ao teste do tempo, porque são bem-feitos e desenhados para não ficarem datados”, conta. “Essa busca por um estilo eterno, na contramão de tendências passageiras, está no âmago da minha visão desde o início. E esse é exatamente o tipo de abordagem da moda que eu gostaria de ver celebrada em museus”, completa, mostrando que compreende a dimensão universal da moda, mas mesmo assim a enxerga como uma nebulosa carregada de possibilidades para a criatividade. Para atravessar a realidade, é preciso acreditar no mistério do planeta.
A exposição “Giorgio Armani Privé 2005 – 2025, Twenty Years of Haute Couture” fica aberta até o dia 28 de dezembro no Armani Silos, em Milão.
Fotos: Divulgação