17 Sacré Numéro: Maria Beraldo

Sacré Numéro: Maria Beraldo

Cultura

Compartilhe esse arquivo

Artista de infinitas camadas – cantora, compositora, produtora e outros “oras” –, Maria Beraldo conta tudo o que está contido em Colinho, seu novo álbum. Garanto que não são só músicas. 

Existem várias maneiras de entrar no universo da cantora, compositora e multiinstrumentista Maria Beraldo, catarinense radicada em São Paulo. É verdadeiramente uma artista de várias camadas, muitas visíveis e outras ainda a descobrir. Você percebe tudo isso conversando com ela, o que fiz para este texto.

 

Sobre qual Maria Beraldo você quer ler primeiro? A que virou cantora em 2018, depois de tocar clarinete na banda do veterano músico Arrigo Barnabé, integrar o grupo que tocava para Elza Soares deitar seu vozeirão e ajudar a fundar o seu próprio grupo, derivado das jornadas com Arrigo, o Quartabê? A Maria Beraldo que bota em suas músicas fortemente, bem explicitamente nas letras – como uma postura de posicionamento mesmo –, seu lesbianismo e, mais que isso, sua não-binariedade? A artista que iniciou na música desde pequenininha, por causa da família, quando teve processos de composição na música erudita, tocando clarinete, depois arriscando-se no choro, no jazz, no violão e no piano até chegar à faculdade, adolescente, e descobrindo o pop e a música eletrônica? A Beraldo que finalmente estampou seu nome numa capa de disco, primeiro com Cavala, o de estreia, quatro anos atrás, e agora, há bem pouco tempo, com o impressionantemente rico Colinho, disco de muitos tons e cores, com pessoas convidadas e sons plurais, de pop e MPB, samba e funk? A pessoa que canta, compõe, toca, e coproduz seu disco, colabora no dos outros e anda fazendo trilha para o Balé Municipal, no espetáculo do teatrólogo Filipe Hirsch?

  • Sacré Numéro: Maria Beraldo Sacré Numéro: Maria Beraldo

Foto: Ivan Nishita

Melhor deixar essas várias Marias Beraldos em uma só falarem como quiserem: “Olha, é um pouco difícil eu mesma posicionar esse meu disco, o Colinho, de algum modo. Porque não tenho ângulo de distanciamento para enxergar, não tenho recuo pra ver a imagem. Do que posso ver daqui, sei que é um disco que puxa a corda da invenção. Vivemos em um mundo onde o mercado engole cada vez mais a produção musical – não a música em si, porque ela é ‘iningolível’, mas há alguma tendência (por motivos de sobrevivência, inclusive) em se fazer música num fluxo de mercadoria. Artistas sendo esmagados pelo peso do sistema. Acho que, com esse disco, estou puxando a corda deste lado, junto com alguns outros amigos (e ídolos) que ainda topam se entregar e inventar”.

 

“Sinto que Colinho é inventivo, mas não hermético, muito pelo contrário: é um disco saidinho, que passeia e bebe de muitas sonoridades, habita o mundo dos instrumentistas. Mas é, acima de tudo, um disco de canção. Acho que ele se localiza na cena de São Paulo, sim, que é onde estou, na companhia de uma turma de compositores que vêm fazendo canção por aqui, e que consolidam algo notável. Ao mesmo tempo, acho que converso um tanto com o Rio também – há nesse disco três participações vindas do Rio (Ana Frango Elétrico, Negro Leo e Zélia Duncan). Tem Os Fita, tem o funk e o samba (que também são paulistas, mas não só). Tem música para o Rio – e Tom Jobim e Chico batem forte como referência. Enfim, tem essa ponte-aérea. Aliás, ponte é uma palavra-chave no caso desse disco.”

  • Sacré Numéro: Maria Beraldo Sacré Numéro: Maria Beraldo

Foto: Ivi Maiga Bugrimenko

“Colinho e o anterior, Cavala, são discos-irmãos. São passos numa mesma estrada. Cavala é um disco de solidão, e falo isso com alegria. Com o Gilberto Gil, aprendi que é preciso aprender a ser só. Ali fui muito só. E faz parte disso o entendimento de quem eu sou, a solidão tem papel nisso. Separar-se dos outros para nos entender como indivíduo é um movimento duro, mas fértil. No Cavala eu estava descobrindo o pop, o eletrônico, tudo muito novo, e, de alguma maneira, quis deixar de lado o que eu vinha fazendo até então. Estava entretida com as descobertas novas e, ao mesmo tempo, me emancipando das origens. No Colinho pude olhar para trás, trazer as origens, chamar meus amigos, cantar junto. É como muitas flechas. Ou um lago, cachoeira, mato. Cheio de gente. Grandes amigos e exímios instrumentistas, parcerias, samba e tudo. O Cavala me deu a solidão, mas também me deu a comunidade. E eu a abracei e fiz o Colinho com ela (e para ela?). Colinho é muito diverso, múltiplo, aberto, mais pop. E também mais ousado, mais solto, é muito livre. Cavala finca os dois pés no chão e Colinho transita, passeia, percorre. Foi o Cavala que inventou o Colinho.”

 

“Olha, acho que Colinho se afirma, se coloca e vem com força, vem com tudo, mas uma coisa meio assim: ele vem de skate, sabe? De prancha, pegando onda. Acho que ele tem um relaxamento. Tem a liberdade de simplesmente ser, e isso foi o Cavala que construiu. Colinho não quer levantar bandeira, um pouco porque isso cansa muito, mas também porque já não sente uma necessidade tão visceral, ou também, talvez por estar mais em paz consigo, mais relaxado na existência (ou nem tanto, vai...). E é muito curioso eu achar que Cavala é um ser feminino e o outro, masculino. Ele é mais solto e relaxado e livre, e isso vai me dando uma raiva, porque no fundo tem a ver com isso tudo.”

  • Sacré Numéro: Maria Beraldo Sacré Numéro: Maria Beraldo

Foto: Ivi Maiga Bugrimenko

“Estou muito feliz com os meus cultivos. Todos esses universos me nutrem muito, são férteis para a minha pesquisa, e ando estudando bastante também. Estudando composição de música de concerto, orquestração. Estudar abre minha cabeça, eu amo. Mas o meu foco de criação agora está na montagem do show do Colinho.”

 

“Fui percebendo e entendendo, ao longo da feitura do disco, que há muitos aspectos do Colinho que me mostram esse olhar para a minha infância. Não fiz nada premeditado, ou querendo fazer esse movimento. Esse disco caminha junto com o meu processo de psicanálise; é um momento de olhar para a minha infância. Deve ter a ver com questões de identidade. Inclusive as letras em inglês eu associo ao fato de estar olhando para esse período da minha vida, e de eu ter sido alfabetizada antes em inglês do que em português, porque morei nos Estados Unidos dos 4 aos 6 anos. Tudo se mistura. As letras vieram em inglês, foi espontâneo. Daí tem esse fato de que a minha família é de musicistas, e cresci estudando clarinete, ouvindo a minha mãe estudar saxofone e compor ao piano, minha irmã tocar flauta, meu pai violão. Minha vida musical começa na música instrumental, tocando choro, jazz, Hermeto Paschoal, Pixinguinha. Quando cheguei a São Paulo, descobri o pop e me apaixonei. Mas agora eu quis voltar com piano, violão, muito baixo acústico. Me dava vontade de ouvir isso e íamos gravando. A imagem que eu vejo depois do disco pronto é essa: de que tem um olhar para a infância, uma puxada nesse fio, uma conexão desses mundos. De não precisar ser uma coisa ou a outra. Poder ser todas ou nenhuma.”

  • Maria integrou as bandas de Arrigo Barnabé e Elza Soares. No momento, ela cria uma trilha para o Balé Municipal e para um espetáculo do teatrólogo Felipe Hirsch.

    Maria integrou as bandas de Arrigo Barnabé e Elza Soares. No momento, ela cria uma trilha para o Balé Municipal e para um espetáculo do teatrólogo Felipe Hirsch. Maria integrou as bandas de Arrigo Barnabé e Elza Soares. No momento, ela cria uma trilha para o Balé Municipal e para um espetáculo do teatrólogo Felipe Hirsch.

Foto: Ivan Nishita